quarta-feira, 4 de junho de 2008

O Livro Riscado


Tomei emprestado da biblioteca municipal um certo livro que me haviam recomendado.
Agora, com todo zelo, corro meus dedos leves por sua capa ocre onde há duas palavras escritas em letra sóbria. Lê-se seu título letárgico em vermelho.
Inicio o meu voraz passeio pelas páginas que trazem em si o amarelado do tempo.
Paro o olhar na terceira delas, onde se pode ler, acima do tombo, uma única frase escrita à mão: Livro com várias páginas riscadas a caneta 04/06/07.
Viro a página. Mergulho no enredo pintado num tom entre o amarelo e o laranja. Um estado de abatimento profundo intensifica-se em mim a cada página virada, a cada capítulo.
Neste livro não há pontos finais, apenas vírgulas. A verdade é que a vida não pára compadecida pelo seu sofrimento.
Capítulo cinco. Sou subitamente arrancada da atmosfera apática da obra novelesca por um pensamento escapista. Interrompo a leitura. Há algo secretamente íntimo unindo-me ao autor daqueles riscos traçados a tinta azul.
Os livros são rabiscos no mundo - a idéia invade meu ser surdamente.- E estes riscos em mim, ao lê-lo, encadeiam, em misteriosos anéis invisíveis, todas as pessoas que já leram este livro, que já correram os olhos por estas palavras...
As nuvens da tarde chuvosa de terça deixam o céu e eu, embriagada pela claridão da verdade (a minha pelo menos), me deixo conduzir pelos pés que antes acreditei estarem me levando à faculdade.
Já não importa mais para onde estou indo. Agora posso ver o caminho neutro do asfalto por onde meus tênis pisam firmes, causando ensurdecedores baques na avenida movimentada, portanto, penso, qualquer destino é bem-vindo.
Outro insight. Vêm à mente as palavras de Vergílio Ferreira, lidas no dia anterior: ... Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez; se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte.
A máxima lembra-me: Eu deveria estar lendo Ensaio sobre a cegueira. Mas ao invés disto, leio este maldito livro rabiscado.

Os rabiscos incomodam, não?
Voltando à lucidez...
Obrigada, Raduan. Obrigada por arrancar de mim as vendas.
Penso, então, em tudo o que antecedeu e sucedeu àquele momento em que ali, chacoalhada frente à Lavoura, chego à grande evidência de uma breve existência ainda iniciante:
"A vida toda é um livro rabiscado".

5 comentários:

Dourado disse...

Uau Mara, fucking fodástico!
Me perdi dentro do seu texto, de um modo bom, me perdi, me desliguei nas palavras, muito bom!

Fernando disse...

... e com a bibliografia propositalmente rasgada."

bjo

Heloisa Emy disse...

xViajante!!

Rasbiscos, riscos, vírgulas e pontos finais... paro. Você descreveu a vida.

Um beijo

arnaldo lauer disse...

e ai marinha!!!
passando pra dar 1 olhada né...
bom daqui uns anos vou ter 2 amigas escritoras..hehehe só não esquece de me chamar para as festas rs rs
fiquei viajando imaginando o livro rabiscado...até criei um aqui na minha cabeça, só que ele esta rabiscado demais, as palavras se confundem, parecem não ter sentido, cada parágrafo que leio não sei se é o que quero ler, cada página que passo não sei se é o que quero viver...=) (sentindo intrínseco)
bjus até...

Unknown disse...

os famosos "autores" de hoje em dia deviam buscar inspirações em blogs como esses... é muito mais belo que sua novelas capitalistas da babilônia atual

(ps.: eu não me esquecerei, jamais!)