quarta-feira, 30 de maio de 2012

O normótico




Valter era um sujeito... adaptado. Perto dele eu me sentia meio doente. Enquanto minha cabeça sempre estava a milhão, Valter parecia não ter questões, não reivindicava nada, não brigava, nunca parecia incomodado.

Quase nunca tinha algo a dizer e quando tinha, vinha repleto de frases feitas. Enquanto eu, neurótico, louco, vivia insatisfeito, sempre reclamando do chefe, da mãe, da correria de São Paulo, do trabalho longe pra burro, do cansaço... sempre choramingando por não ter um carro, um apê, uma namorada... na verdade, meu problema é ausência.

Valter não parecia sofrer deste mal... nunca dizia que a vida estava ruim, nem festejava por estar boa. Alguns diriam: Eis um cara acomodado. Eu diria: será que ele não sente falta de nada? Tudo o que eu queria era encontrar "buracos" no Valter.

A verdade é que o cara me intrigava, ele era um grande mistério. Era difícil advinhar o que o sujeito estava pensando, duro até mesmo saber se ele gostava de mim.

Além de tudo, ele era um cara calado. Parecia que não fazia planos, que não pensava no futuro. Trabalhar, trabalhava, mas fazia isso mecanicamente. Quando eu lhe perguntava qual era a sua maior ambição, Valter respondia: "ganhar dinheiro". (Me diga, dinheiro pra quê?) Embora dissesse que queria uma vida financeira melhor, não se movimentava em direção a isso... Ao contrário, se fazia algum esforço (coisa que eu duvido) era para ficar onde estava.

Às vezes eu me perguntava se Valter não mudava por medo de não gostar do que poderia encontrar lá na frente... ou se o medo era outro: não queria mudar, pois tinha medo de que as pessoas rejeitassem aquilo que ele se tornaria. Mas isso é só uma hipótese, como disse, a cabeça deste homem era totalmente inacessível para mim. Eu nem mesmo sabia se ele se importava com tudo isso. Então o analisava a partir de minha própria lógica... é claro que isso só tornava as coisas ainda mais confusas para mim.

Quando a gente pára de desejar é a morte, eu pensava. É isso, Valter era um morto-vivo, não esboçava qualquer desejo, nada parecia impulsioná-lo adiante. Devo admitir que sintia um pouco de inveja do Valter, porque ele não sofria. Pelo menos, não parecia sofrer. Desejar é doloroso que só! Meu amigo simplesmente se contentava com o que o mundo dava a ele. Aliás, em uma coisa Valter era muito bom: respeitava regras como ninguém. Não ultrapassava farol vermelho, nem xingava a mãe dos outros.

Por vezes, eu até vislumbrava resquícios de anseio no Valter. De início, sempre que algo não ia bem, ele até parecia um pouco descontente, mas não se revoltava, não reclamava e logo depois tudo se normalizava, e desaparecia qualquer esboço de insatisfação. Voltava, o normótico.

Não sei se você conhece o Valter, mas eu tenho quase certeza de que pode imaginá-lo. E quanto a mim? Não tenho nem palavras para ilustrar o desconforto que era lidar com esta figura... nada que eu possa dizer lhe fará ter a mínima noção do que é estar em minha pele. Logo eu, um cara que vive com a cabeça a milhão... dando voltas e voltas em torno de mim mesmo. Repetindo, repetindo os mesmos erros numa ânsia desesperada de finalmente acertar... Logo eu, um cara louco de pedra, cheio de vontades. Vontades que fogem ao meu controle, coisas que não posso ter, mas desejo.

Isto tudo é uma doidera... como um cara assim poderia me causar tamanho impacto? Eu aqui questionando a minha própria sanidade quando, na verdade, quem deveria se questionar era ele! Olha só, eu de novo fazendo a minha leitura particular do mundo. Do mundo do outro...

Descobri enfim porque o Valter me incomodava tanto, porque ele me fazia sofrer e, ao mesmo tempo, porque me facinava tanto... ora, tão simples: é porque eu sou eu e ele é o Valter. Tão inatingível, tão estranho... tão Valter!!!

E tão... completo (?) Ah, como eu queria ser como o Valter!

Talvez o maior incomodo seja justamente o fato de, lá no fundo, não ser tão diferente assim.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Sem rumo




Levantou-se, dirigindo-se à janela. Debruçou-se no batente, olhando para o nada.
O céu estava branco como naquelas manhãs em que tanto o sol, quanto a chuva se escondem.
Lembrou-se de um certo autor aclamado que escreveu sobre uma tal cegueira branca. Imaginou que ela devia ser parecida com isso. Sus-pirou...
Fechou a janela e caminhou de volta à cama. Sentou, chorou. Calçou os sapatos e, sem se importar por ainda estar usando pijamas, abriu a porta. Primeiro a do quarto, depois a da sala, depois o portão de casa.
E ganhou as ruas, estranhamente claras, caminhando com pressa.
A cada novo passo, mais valocidade impelia à caminhada, andando com vigor quase desesperado sem saber, no entanto, aonde queria chegar.