Lá
fora, pela janela, há um beija-flor morto.
Olhando
o beija-flor Marina é transportada para a noite anterior.
Está
chovendo, ela desce do ônibus e pragueja: o guarda-chuva não quer abrir.
É o
ponto em frente à igreja referência do bairro há bem mais de 50 anos.
Igreja
onde a mãe de Marina se casou, onde a moça se crismou, onde, nos momentos de
dificuldade, via-se prostrada ao altar. Senhor do Bonfim.
Virando
a esquina, em frente à banca de jornal, há um corpo, pequeno, na chuva,
protegido por policiais.
Ao
lado de Marina uma mulher anuncia: “É um menino de 7 anos, foi atropelado,
recebi a mensagem no grupo da igreja na rede social”. Senhor do Bonfim.
Marina
se lembra de, ainda menina, estar na companhia da avó assistindo à missa no
domingo. Àquela altura ainda não havia pensado na morte mesmo que – hoje sabe –
logo que nascemos já começamos a morrer, a cada ausência materna, a cada choro
não atendido. Estar ausente é como estar morto.
Marina
não tinha mais notícias disso, senão no inconsciente, porque a imagem no altar
apagava todas as angústias, era o pai todo poderoso que seu pai humano nunca
pôde ser. Dizem que para a criança o pai é sempre um herói...
Hoje
Marina sabe que não existem heróis e que Deus é, na verdade, uma necessidade
pra quem tem a barriga vazia e um luxo pra quem aplacou a fome, mas sabe que
toda sorte é passageira.
Mesmo
assim ela se pergunta se aquele corpo no chão, se aquele menino tinha um herói.
A mulher emenda: “É desses moleques que ficam aí pelas ruas.”
É um
vir a ser, Marina pensa. Alguns diriam: futuro marginal em potencial.
Mas
ela sabe apenas que ele é um vir a ser que, no entanto, nunca será.
Morto
ao lado da igreja Senhor do Bonfim, teve seu fim – que de bom não tinha nada –
aquela pobre criatura que nunca seria nada além de uma potência desperdiçada,
um pequeno corpo cuja fascinante energia vital se dissipou, beija-flor.
Do
outro lado da janela o pássaro que não beijará mais flor alguma é contemplado
por Marina.