quinta-feira, 28 de agosto de 2008



Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...

Então hoje não tem crônica.


Carlos Drummond de Andrade

2 comentários:

Ana disse...

Com certeza escrever para viver é pior do que viver para escrever
Escrever é um vício e pior (ou melhor?), contagioso. Veja pelos comentários. Uma idéia aparece com milhares de outras formas. Há troca. Há renovação. Há vida.
Escrever faz bem, mesmo quando for para dizer que não há o que escrever!
Grande Drummond, grande Mara!

Ana disse...

O mundo virtual tem disso não é mesmo? Sabemos de coisas intimas das pessoas, sem ao menos conhecê-las pessoalmente, ou ter trocado uma palavra simultaneamente. Encontramos semelhanças e diferenças, trocamos idéias, crescemos e aprendemos com o outro. Desconhecidas? Jamais...pode ter certeza que você me conhece melhor do que muita gente que convive comigo.
Essa viagem foi muito importante por conta da mudança na minha vida profissional...você saberá em breve, pois terá um post.
Beijos querida.